Lúcio Flávio Pinto
Editor do Jornal Pessoal
Conta a lenda que certa vez Assis Chateaubriand telefonou para o editorialista do Diário de S. Paulo, encomendando um artigo sobre Jesus Cristo para a sexta-feira santa. Na bucha, perguntou o solícito escriba:
– A favor ou contra?
É fato incontestável que Edmundo Bittencourt mandou expurgar do Correio da Manhã o nome do escritor mulato (o “outro lado” de Machado de Assis) Lima Barreto, ao ver-se retratado (e ironizado) em Recordações do escrivão Isaías Caminha, hoje um clássico da literatura brasileira e uma das mais confiáveis referências sobre a redação de um jornal dessa época.
Também o presidente Arthur Bernardes foi interditado das páginas do Correio, o mais importante jornal da república durante pelo menos meio século. Já O Estado de S. Paulo passou a tratar o governador (e eterno candidato a presidente) Ademar de Barros somente por A. de Barros.
Exemplos do abuso do direito de informar? Certamente. Nem por isso, entretanto, pode-se dizer que os “barões da imprensa” reescreveram como quiseram a história do seu tempo, ou a apagaram, conforme seus caprichos, veleidades e suscetibilidades. O impulso do dono do Correio da Manhã foi típico de exercício do poder e do machismo da época, como o que o fez duelar com o também poderoso político gaúcho Pinheiro Machado. Já o veto a Bernardes foi represália ao fechamento do jornal (por longos sete meses) ordenado pelo político mineiro, que exerceu todo o seu quatriênio presidencial sob estado de sítio, na irrupção das revoltas tenentistas.
Júlio de Mesquita Filho se vingava do interventor de São Paulo, conivente com a ocupação federal do jornal, determinada por Getúlio Vargas durante a ditadura do Estado Novo, que levou a família Mesquita a se exilar. Ademar virou uma inicial, mas não sumiu do noticiário. Apenas era tema constante dos ataques do Estadão (como Maluf viria a ser também). Mal menor, principalmente em função do efeito contrário: a repulsa do grande jornal paulista às ditaduras, que levou o filho de Julinho, Júlio Neto, a romper com os militares, cujo golpe o pai apoiara (e dos quais se desligara com o AI-5).
Encarar a grande imprensa como um Partido da Imprensa Golpista não é só uma ofensa à verdade histórica: é uma forma sorrateira (e, para alguns usuários dessa definição, cínica) se estimular, ainda que subliminarmente, a censura oficial, a perseguição estatal ou a sedução pelo poder estabelecido. A esquerda cultiva a última dona do Correio da Manhã, viúva de Paulo, Niomar, como heroína. Sua resistência aos despóticos donos do poder, com a deposição de João Goulart, foi realmente admirável.
Ela demonstrou uma fibra rara naqueles dias de intolerância e obscurantismo, que induziam a covardia e a acomodação. Mas foi também de uma leviandade incrível na condução de uma instituição como o Correio. No auge do prestígio do jornal, seu redator-chefe, o controverso Costa Rego, tinha mais poder do que a grande maioria dos freqüentadores dos palácios do Catete e Guanabara, sedes da presidência da república no Rio de Janeiro. Mesmo eventuais barbaridades eram bem feitas no jornal, temido pelo conteúdo das suas páginas, onde se combinavam inteligência, força argumentativa e boa informação.
Eis o fundamento da relevância social da imprensa: não banir a história cotidiana das suas páginas. Pelo contrário, submeter-se à imposição da função da imprensa: identificar os fatos relevantes do dia a dia e não deixar de referi-los para o leitor, mesmo que a contragosto. Daí a importância da leitura das publicações periódicas. Elas podem minimizar acontecimentos e dificultar a compreensão dos fatos, mas em algum lugar esses dados estarão registrados. A leitura de um jornal com essa diretriz pode ser demorada e exigir maior preparo para sua decodificação, mas terminará por dar ao leitor melhores condições para exercer seu papel social.
Mas o que acontece quando à frente de uma organização complexa e sensível como uma empresa jornalística estão pessoas sem a menor consciência sobre a especificidade do seu negócio e a dimensão profunda do seu produto, ou sem o respeito devido à opinião pública, destinatária e razão de ser da imprensa? O Pará está entregue a essas pessoas. O comando das empresas jornalísticas não está à altura das necessidades e exigências do Estado. Num momento de altas responsabilidades, a imprensa é comandada por anões.
Os dois principais grupos jornalísticos tem interesses políticos e comerciais fortes demais. Não conseguem exercer a função de registrar, analisar e interpretar os acontecimentos sem que essa mediação esteja contaminada pela sua própria condição: de participantes desse enredo diário. Não tem a isenção e a grandeza requeridas para serem os auditores da sociedade.
Por incrível que pareça, a situação é menos grave sob o império do ex-deputado federal Jader Barbalho. Apesar das origens desse grupo de comunicação estarem confundidas pela promiscuidade no exercício do poder público e sua continuidade depender da manutenção desse domínio político, os veículos da corporação tentam até mesmo abrigar o noticiário contra o dono. Há vislumbres e sussurros de controvérsia e crítica no Diário do Pará e nas emissoras da RBA. Mesmo quando periodicamente sujeitos a recaídas censoriais e oportunistas.
Nem isso tem a possibilidade de acontecer no império dos Maioranas. Alguém já viu ou ouviu algum laivo de restrição aos donos das emissoras do grupo Liberal? Já foi possível ler a mais remota sombra de restrição aos integrantes da família, em sua exclusiva face de pessoas públicas e notórias? Quem tiver exemplos, pode apresentá-los.
O que há é abundante demonstração em contrário. Nenhum dos veículos do grupo Liberal fez a mais remota referência à ação proposta pelo Ministério Público Federal contra os irmãos Romulo e Ronaldo Maiorana. Como a ação na justiça federal não existiu para eles, a absolvição também não foi noticiada. Muito leitor deve ter ficado confuso ao constatar que a notícia saiu no rival Diário do Pará, mas não em O Liberal, que, em tese, devia até saudá-la em editorial de primeira página. Afinal, os donos do jornal não estavam se livrando, ao menos no primeiro grau de jurisdição, da ameaça de condenação, que parecia inevitável?
É verdade que o mérito da questão deixou de ser examinado pelo juiz Antonio Campelo. Sua sentença se valeu de uma formalidade, o fim do direito do Estado à punição do delito cometido, tecnicamente chamada de prescrição.
Mas certamente não foi pela consciência da relatividade da extinção do processo sem consideração de mérito que nada foi publicado (situação semelhante à do prefeito Duciomar Costa, réu confesso do crime de usar diploma falso de médico, também beneficiado pela prescrição). A razão do silêncio final, coerente com o silêncio inicial, é expurgar o fato inconveniente da história. Quem for reconstituí-la pela consulta à coleção de O Liberal jamais saberá que houve esse processo. Daí tantas histórias falsas escritas por acadêmicos medíocres.
Outro exemplo, o mais recente: os veículos do grupo Liberal não fizeram qualquer registro sobre a morte do advogado, professor e jornalista Fernando Moreira de Castro Júnior. Fernando foi funcionário de O Liberal, amigo ou conhecido dos donos da empresa e pessoa de grande evidência social. Sua mulher trabalhou por muito mais tempo ainda no grupo Liberal.
Ambos eram – e Vera continua a ser – o que antigamente se chamava de confrades dos Maioranas. Mas não só não houve uma única notícia sobre o falecimento como sequer os seis colunistas sociais do jornal se dignaram a dar um adeus ao colega e, para alguns, amigo. Tudo porque ordem superior determinou silêncio total. O crime do réprobo: trabalhar no jornal do inimigo, vergastado quase todos os dias por editoriais monocórdios como o exemplo universal da corrupção, da qual os irmãos Maioranas se livraram (como o próprio Jader Barbalho em outros momentos) pela prescrição, já réus confessos. Ou pelas lacunas nas leis ou pela leniência, lentidão ou incompetência dos órgãos da sociedade incumbidos de punir os malfeitos.
O Liberal parece todo integrado por personagens como o editorialista vassalo de Assis Chateaubriand. Não há mais qualquer força de resistência às ordens emanadas do mais alto posto na hierarquia da empresa, mesmo que essas determinações atentem contra a razão de ser da imprensa ou viole dignidades pessoais, já negociadas e arquivadas no escaninho das conveniências e oportunismos.
Quem vasculhou O Liberal no dia seguinte à morte de Fernando Castro, nada encontrou sobre um fato que podia ter sido albergado em duas linhas de coluna ou num noticiário burocrático. Mas encontrou um anúncio fúnebre do Banco do Estado do Pará comunicando o falecimento – pago, naturalmente. Era só o que havia sobre aquele fato, que qualquer jornal decente não deixaria de publicar. A dignidade jornalística foi extinta no jornal de Romulo Maiorana, se é que já não está em decomposição. O caixa é o que continua funcionando.
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